terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O jogador e a carne recoberta de ouro


Tenho acompanhado certos comportamentos considerados excêntricos por parte de ricos ou super ricos e as críticas sobre eles. É impossível não perceber que o olhar parece sempre mais cáustico sobre aqueles que vieram da pobreza, como certos jogadores de futebol.

Mas não é só sobre eles que recaem as críticas quando alguma ação de pessoas com condições financeiras muito, mas muitíssimo acima do comum parece extravagante demais, ousada demais – especialmente, quando beira o desperdício de quantias pequenas, como comer carnes banhadas em ouro ou enormes, como o envio de foguetes para o espaço por empresa particular que visa fazer disso comércio. (Pequenas para eles, diga-se – não para os mortais assalariados como nós).

O argumento é que tais quantias poderiam ser usadas para muitas outras coisas considerando-se as necessidades atuais do mundo em que vivemos, cheio de fome, doenças, violência, guerras. Especialmente no caso daqueles que vieram da pobreza, sempre há o questionamento sobre se essa verba não seria melhor aplicada para atender necessidades de suas comunidades.

Afinal, o dinheiro é a grande mola que move o mundo tendo o poder de suprir necessidades – mas também de gerá-las, considerando-se o aprofundamento das desigualdades sociais que tem como um de seus sintomas justamente o acúmulo de renda nas mãos de uns poucos enquanto os demais padecem das necessidades da vida sem acesso, tantas vezes, ao básico.

Obviamente, é uma análise infantilizada esperar que as pessoas que foram beneficiadas com as benesses da herança ou da sorte, aquela mistura incerta de talento e dedicação com uma pitada do Além, peguem em suas mãos o destino do mundo se transformando em milionários/bilionários franciscanos alimentando fundações e entidades que visem sanar, ainda que localmente, alguns dos problemas causados pela deficitária distribuição de renda. Que milionários tenham comportamento monástico e abnegado.

É claro que a filantropia é algo desejável nesse estágio social em que estamos. A escolha de despender parte significativa de uma fortuna que se possui visando sanar alguma deficiência causada pela pobreza pode demonstrar certo apego à ética e ao desejo pelo bem comum. Escavar poços para aqueles que não possuem água. Sustentar hospitais onde eles não existiriam de outra forma. Produzir vacinas para países que não têm como comprá-las.

Elogiável – mas não é isso que resolverá as diferenças que transformam um pobre nórdico quase em uma entidade do ouro comparando-se o poder de compras de seu salário com o de uma mulher negra brasileira de comunidade.

Por que a mulher negra brasileira? Pelo simples fato de que ela é a base da pirâmide de rendimentos tendo, no Brasil, o pior salário de todos os demais segmentos. Ela é a face da nossa desigualdade.

Não. Não são os filantropos os responsáveis pela solução do problema da desigualdade.

A solução é um comportamento político de reforma das próprias instituições e da maneira como se conduz a economia de forma a priorizar a população: sua educação, seu desenvolvimento e seu acesso à empregabilidade com salário justo e benefícios que protejam e incentivem a força de trabalho. Nada comparado a comer carne banhada em ouro, nada disso, veja bem. Estou falando de mero acesso à alimentação, saúde, segurança, habitação, educação, lazer. De acesso à dignidade.

Isso é responsabilidade de políticos conduzindo a máquina pública não para alimentar a ganância de fortunas já conquistadas aprofundando as desigualdades, mas, sim, para a valorização real do povo e ao sonho da eliminação da pobreza começando hoje em passos pequenos, mas significativos como, por exemplo, garantir, ao menos, alimentação digna diária a todos.

E falando em ouro e espaçonaves.

Quem tem condições de enviar foguetes para o espaço bancando todo o trabalho para suprir um desejo milionário de monetizar viagens espaciais pode fazê-lo? Claro.

Quem tem condições de comer carne revestida de ouro podendo pagar por isso, pode fazê-lo, seja jogador de futebol, herdeiro ou humorista? Claro.

Um local que fornece esse tipo de alimento cujo único objetivo é saciar a ganância do estômago alimentada pelo cérebro cheio de desejos, sem valor nutricional algum que o justifique, pode existir? Claro.

Mas a pergunta não é essa. A pergunta não é se pode – ou podem.

A pergunta certa é: deve? Devem?

Trocar verbos nos questionamentos pode ser um ótimo exercício de reflexão.

Profa. Érica
@ProfaEricaCL

Nenhum comentário:

Blogger templates

Your email address:


Powered by FeedBlitz

Obrigado pela visita de todos vocês!

Locations of visitors to this page